Bloco & Bisel: as virtudes retóricas, a formação do músico e a prática da flauta doce nos tratados musicais do século XVI

por Maurício Tadeu dos Santos Orosco
Publicado: 20/06/2024 - 15:46
Última modificación: 20/06/2024 - 15:47

No contexto humanista do século XVI, os textos musicais identificavam a música como um discurso e o músico, como um orador que devia seguir os princípios da retórica verbal para a composição e interpretação musical. Na formação retórica, Cícero e Quintiliano afirmavam que o bom orador era, antes de tudo, um homem bom, possuidor de todas virtudes de caráter. A hipótese desta proposta é que, embora o conceito de virtude fosse raramente mencionado na tratadística do século XVI, ele certamente norteava a formação do músico. Questiona-se: como as virtudes orientavam a formação do músico nos tratados do século XVI? Pretende-se compreender de que forma as virtudes retóricas orientavam a formação do músico no século XVI, a partir dos tratados publicados nesse período. Especificamente, busca-se compreender a relação entre as virtudes retóricas e os conteúdos dos tratados mapeados; identificar, nos tratados, as habilidades que eram necessárias para a prática instrumental; e analisar as orientações dos tratados à luz da experimentação prática com um conjunto de flautas doces. A pesquisa insere-se numa área subdimensionada na pesquisa acadêmica brasileira, na qual o tema raramente é abordado de forma multidisciplinar. Buscamos um entendimento aprofundado de expressões artísticas de mais de 400 anos, propondo uma mudança de abordagem: os objetivos práticos são embasados e relacionados com áreas como a história, organologia, filologia, filosofia e retórica. Esperamos estreitar a relação entre investigação musicológica e interpretação musical, criando um fluxo bidirecional entre estas duas disciplinas, de modo que seus pressupostos de desenvolvimento se cruzem e interajam na prática interpretativa. Os possíveis impactos incluem avanços na compreensão e aplicação de conhecimentos técnicos e teóricos do controle instrumental e interpretativo da música do século XVI. Só assim será possível construir uma ideia ampla acerca dessa música, capaz de subsidiar a interpretação e expressividade musical, bem como o ensino deste repertório e da flauta doce nos dias atuais. As três principais referências bibliográficas em que a pesquisa se baseia são: 1. Le istitutioni harmoniche (1558) de Gioseffo Zarlino. Tratado paradigmático sobre a música do século XVI, discorre tanto sobre questões da Música Especulativa quanto da Prática para apresentar o conceito de Musico Perfetto. Estabelece no conhecimento científico-matemático mais avançado de então, a justificativa para a prática dos músicos de seu tempo. Sistematiza os procedimentos do contraponto (um dos pilares da formação do músico até hoje), define a teoria modal e as regras de acomodação entre texto e música. 2. Institutio Oratoria de Quintiliano. Obra em 12 volumes sobre a retórica romana. De especial interesse são os livros VIII e IX que tratam da elocução e especificam, com base na definição aristotélica (Ét. Nic.), as virtudes do estilo que compõem o referencial teórico desta proposta. 3. Um modelo para a interpretação de polifonia renascentista, de Pedro Alexandre Sousa e Silva. A tese propõe um modelo para a utilização do consort de flautas doces na interpretação da polifonia renascentista, revisa parte da teoria musical do século XVI, e realiza uma experimentação prática com a execução de uma seleção de obras do manuscrito de Braga, servindo como ponto de partida para a pesquisa-ação aqui proposta. O delineamento metodológico tem como norte a articulação entre teoria e prática musical. É proposta uma abordagem comparativa entre as informações contidas nos tratados mapeados e os conceitos de virtude advindos da retórica, paralelamente à realização de uma experimentação prática com um conjunto de flautas doces. A pesquisa seguirá procedimentos da investigação bibliográfica e documental acerca de três eixos temáticos principais: estudos atuais sobre a música antiga, fontes primárias do século XVI e início do XVII, e fontes gregas e romanas da retórica. A pesquisa propõe uma abordagem filológica para a qual é crucial utilizar, principalmente, fontes primárias como fac-símiles de tratados, dicionários e partituras que, em sua maioria, estão disponíveis na internet. O percurso prevê as seguintes etapas: 1) mapeamento e escolha dos documentos que constituirão o corpus a ser examinado; 2) exploração do material para a definição de categorias de análise e para a seleção de repertório musical para a experiência prática com o grupo de flautas; 3) interpretação dos tratados à luz das virtudes e vícios, simultaneamente à 4) pesquisa-ação que incluirá a aprendizagem das flautas renascentistas, da leitura das partituras originais do século XVI (sem edições modernas) e atividades como leitura de repertório, ensaios, gravações (áudio e/ou vídeo) e apresentações públicas, com vistas à articulação entre as orientações teóricas obtidas nas demais etapas da pesquisa e as decisões musicais do conjunto de flautas doces. A proposta de associar a análise dos tratados a uma pesquisa-ação ecoa os estudos da Nova Musicologia e sua interdisciplinaridade, na qual a crítica e a prática musical são orientadas pela história e realizadas de forma contextualizada. Também dialoga com a musicologia italiana que investiga a música do século XVI relacionando-a com disciplinas relevantes para aquela época, com o intuito de gerar conhecimento e produções artísticas que considerem o decoro de hoje. O principal impacto esperado é a inserção de nova área de conhecimento no currículo do curso de flauta doce da Universidade Federal de Uberlândia o que, além de fortalecer o curso, oferece a perspectiva de implantar uma linha interdisciplinar de pesquisa junto de outros núcleos do Instituto de Artes e de outros institutos da UFU (e.g. história, filosofia, etc.). Espera-se também que este projeto possa nutrir temáticas novas a serem desenvolvidas em linhas de pesquisa na pós-graduação. O projeto contará com a parceria do Grupo de Pesquisa em Música da Renascença e Contemporânea – GReCo, sediado na Universidade de São Paulo, com o qual a proponente coopera desde 2015, consolidando assim uma parceria interinstitucional. Ressaltamos a perspectiva pioneira do projeto ao propor um estudo aprofundado da prática da música do século XVI que, apesar de ser a “era de ouro” da flauta doce, raramente é abordada nos cursos superiores de música do país e com instrumentarium adequado.

Financiadores: